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"Do pão com marmelada" de Isabela Figueiredo
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"Do pão com marmelada" de Isabela Figueiredo
Quarta-feira, Janeiro 28, 2009
Do pão com marmelada
Estão sempre a dizer-nos que devemos viver no presente, para o presente, mas o presente não existe. O meu dia de hoje é a ponte entre o passado do qual venho e o futuro que projecto. Estou no presente por instantes, e atravesso-o, de facto, impulsionada pelo tempo passado através do qual me situo e oriento. Tudo em mim é passado. O que fui está lá atrás, e o que fui é sólido, posso tocar-lhe através da memória. Reconheço uma maçã porque um dia comi uma maçã.
O filho de uma amiga está na Marinha, e acontecia descrever-me os hábitos matinais: alvorada às sete; calçar as botas, que têm obrigatoriamente de ficar guardadas no cacifo; lavar a cara; fazer a barba e pentear-se; correr para o refeitório antes das 7h45; compor o próprio pequeno-almoço, que poderá ser de café ou leite ou Nesquik, e pão com manteiga ou com marmelada.
Pão com marmelada....
Evoquei, então, os pequenos-almoços e lanches da secção feminina do Colégio Nun' Álvares, em Tomar, onde fiz a minha tropa. Era exactamente assim, à excepção do Nesquik, substituído por chá muito deslavado. Também não gostávamos do café com leite, que tinha um sabor torrado, nem do leite, que sabia a gordura, nem do pão com manteiga que dizíamos ser margarina, nem da marmelada, que era sempre a mesma, e parecia graxa.
Não gostávamos de nada, e tínhamos técnicas para esconder a comida, e a seguir deitá-la fora, para gastar dinheiro em porcarias, se bem que eu nunca o tenha feito, porque sempre fui de boa boca, tinha uma fome esganada, e como chefe de mesa não o podia fazer nem permitir, a não ser que fosse clandestino.
Mas esse sabor do pão com marmelada... sacudia a minha gulodice. Não podia admitir, para que não me chamassem saloia, ou qualquer outro nome sem importância alguma agora, mas o raio do pão com marmelada... agradava-me o saborzinho ácido do marmelo, e a consistência do doce, à fatia. É só esta memória - este sabor da marmelada. Só isto.
Li recentemente que a secção feminina do ex-colégio Nun' Álvares vai ser tranformada num hotel de charme, em conjunto com o convento de Santa Iria, ao qual se encontrava ligado por um passadiço aéreo, e também, segundo a lenda que transmitíamos umas às outras oralmente, por túneis que teriam permitido a passagem de freiras e de senhores para encontros inenarráveis.
O ex-colégio feminino era um lugar cheio de escadas, caves, portas que acabavam em paredes, paredes onde se abriam portas inesperadas, e fantasmas que nunca vi.
Tenho muita pena que esse lugar onde todas nos sentimos tão sós e tão solidárias, onde nos apaixonámos, e nos quisemos suicidar com Lorenin, e lemos os Lusíadas e A Cidade e as Serras, e vimos o Dancing Days, experimentando uma adolescência tão contida e tão intensa, seja agora transformado num hotel para endinheirados. Preferiria que ficasse para sempre assombrado pelos fantasmas das nossas vivências, dos nossos risos e tristezas. Que ficasse parado no tempo, com a casa das roupas tal como foi; e a camarata grande, com floreados em estuque de gesso no tecto, e a cama alta da D. Perpétua logo à entrada - o penico por baixo; a casinha dos retratos das alunas exemplares, onde o senhor Ilídio nos dava bofetadões a que chamava festinhas.
Que transformassem aquele espaço num refúgio para gente sem casa, tal como todas éramos: gente sem abrigo, sem casa, sem família, que se apoiava mesmo quando se odiava muito mais. Era isso que queria. Era só isso que queria trazer desse passado. Essa velha dor guardada numa caixa que nenhum de vós pudesse abrir.
Publicada por Isabela Figueiredo em Quarta-feira, Janeiro 28, 2009
Etiquetas: adolescentes, Colégio Nun' Álvares, o passado, solidão
Do pão com marmelada
Estão sempre a dizer-nos que devemos viver no presente, para o presente, mas o presente não existe. O meu dia de hoje é a ponte entre o passado do qual venho e o futuro que projecto. Estou no presente por instantes, e atravesso-o, de facto, impulsionada pelo tempo passado através do qual me situo e oriento. Tudo em mim é passado. O que fui está lá atrás, e o que fui é sólido, posso tocar-lhe através da memória. Reconheço uma maçã porque um dia comi uma maçã.
O filho de uma amiga está na Marinha, e acontecia descrever-me os hábitos matinais: alvorada às sete; calçar as botas, que têm obrigatoriamente de ficar guardadas no cacifo; lavar a cara; fazer a barba e pentear-se; correr para o refeitório antes das 7h45; compor o próprio pequeno-almoço, que poderá ser de café ou leite ou Nesquik, e pão com manteiga ou com marmelada.
Pão com marmelada....
Evoquei, então, os pequenos-almoços e lanches da secção feminina do Colégio Nun' Álvares, em Tomar, onde fiz a minha tropa. Era exactamente assim, à excepção do Nesquik, substituído por chá muito deslavado. Também não gostávamos do café com leite, que tinha um sabor torrado, nem do leite, que sabia a gordura, nem do pão com manteiga que dizíamos ser margarina, nem da marmelada, que era sempre a mesma, e parecia graxa.
Não gostávamos de nada, e tínhamos técnicas para esconder a comida, e a seguir deitá-la fora, para gastar dinheiro em porcarias, se bem que eu nunca o tenha feito, porque sempre fui de boa boca, tinha uma fome esganada, e como chefe de mesa não o podia fazer nem permitir, a não ser que fosse clandestino.
Mas esse sabor do pão com marmelada... sacudia a minha gulodice. Não podia admitir, para que não me chamassem saloia, ou qualquer outro nome sem importância alguma agora, mas o raio do pão com marmelada... agradava-me o saborzinho ácido do marmelo, e a consistência do doce, à fatia. É só esta memória - este sabor da marmelada. Só isto.
Li recentemente que a secção feminina do ex-colégio Nun' Álvares vai ser tranformada num hotel de charme, em conjunto com o convento de Santa Iria, ao qual se encontrava ligado por um passadiço aéreo, e também, segundo a lenda que transmitíamos umas às outras oralmente, por túneis que teriam permitido a passagem de freiras e de senhores para encontros inenarráveis.
O ex-colégio feminino era um lugar cheio de escadas, caves, portas que acabavam em paredes, paredes onde se abriam portas inesperadas, e fantasmas que nunca vi.
Tenho muita pena que esse lugar onde todas nos sentimos tão sós e tão solidárias, onde nos apaixonámos, e nos quisemos suicidar com Lorenin, e lemos os Lusíadas e A Cidade e as Serras, e vimos o Dancing Days, experimentando uma adolescência tão contida e tão intensa, seja agora transformado num hotel para endinheirados. Preferiria que ficasse para sempre assombrado pelos fantasmas das nossas vivências, dos nossos risos e tristezas. Que ficasse parado no tempo, com a casa das roupas tal como foi; e a camarata grande, com floreados em estuque de gesso no tecto, e a cama alta da D. Perpétua logo à entrada - o penico por baixo; a casinha dos retratos das alunas exemplares, onde o senhor Ilídio nos dava bofetadões a que chamava festinhas.
Que transformassem aquele espaço num refúgio para gente sem casa, tal como todas éramos: gente sem abrigo, sem casa, sem família, que se apoiava mesmo quando se odiava muito mais. Era isso que queria. Era só isso que queria trazer desse passado. Essa velha dor guardada numa caixa que nenhum de vós pudesse abrir.
Publicada por Isabela Figueiredo em Quarta-feira, Janeiro 28, 2009
Etiquetas: adolescentes, Colégio Nun' Álvares, o passado, solidão
chana-cna
"Pão com marmelada"
A Isabela Figueiredo já tinha um texto sobre o Ti'Ilídio de alguma polémica e muita ternura e boa memória no seu blog anterior "O Mundo Perfeito".
Este é o endereço do novo http://novomundoperfeito.blogspot.com/ .
Abraços a todos
Mário Simões
Este é o endereço do novo http://novomundoperfeito.blogspot.com/ .
Abraços a todos
Mário Simões
Mário Simões
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